Eu não sei como aconteceu. Eu me lembro da dor que eu sentia e de como ela impedia o sorriso de aparecer em meu rosto. Eu me lembro vagamente do que me fez tão triste. De quem me fez tão infeliz, ou talvez, de quem nunca me fez feliz.
Mas aquele garoto, desengonçado e alegre, apareceu de repente e expulsou tudo de ruim que pairava no ar.
Lembro-me bem da noite sem estrelas, do ônibus que nunca chegaria e de como ele percebeu o quanto eu não estava bem. Ele me olhou, me observou, me estudou até decidir o que faria em seguida. E então ele tomou a decisão da noite: me fazer apenas sorrir.
Eu me lembro que além do sorriso que renasceu em meu rosto, lembro das gargalhadas. Lembro de como ele ria, de como eu também pude fazê-lo rir até ver todos os seus dentes. Eu já havia esquecido daquela sensação. Chorar de rir. Barriga doer. Rosto dormente.
Parecia que de fato já nos conhecíamos há tanto tempo e não apenas naquele breve momento, esperando o mesmo ônibus, na mesma parada.
Esperávamos o ônibus e no fundo eu nunca quis que ele chegasse. Ao invés do ônibus, uma mulher, um pouco mais dos trinta anos, apareceu e nos informou que para chegar no lugar que queríamos, teríamos que nos dirigir a outra parada de ônibus.
No caminho por entre as ruas desertas e a noite fria, ele fazia mais piadas em como nós esperaríamos até amanhecer o ônibus que nunca viria. Ele disse que ficaria com o banco da parada do ônibus para dormir, e eu teria todo o chão só para mim. Eu repliquei dizendo que tal ação não seria nada cavalheira e ele disse que cavalheiros não existiam. Por enquanto que discutíamos a existência do cavalheirismo, o tal ônibus esperado passou por nós com toda velocidade. A mulher grita:
"É o último!"
Lembro da mão dele segurando a minha, dele puxando o meu corpo e correndo como se a vida dele dependesse disso. Minhas pernas entretanto não foram tão agéis quanto as dele. Senti meu corpo sendo possuído pela adrenalina. Me visualizei dormindo no cadeira da praça, no chão da calçada ou no banco da parada de ônibus.
E então eu parei abruptamente de correr e nossas mãos se soltaram.
Eu ofegava, respirava o ar gelado que entrou em choque com meu organismo quente.
"Não desista, estamos quase lá" Ele disse.
Eu respirava ainda ofegante.
"Vá. E salve a sua vida" Eu disse forçando uma voz dramática.
Ele soltou a maior das gargalhadas e puxou a minha mão. Senti meu corpo se movendo, ouvi ele reclamar dos saltos altos que eu usava. Minhas pernas doíam.
Finalmente, lá estava O ônibus. Parado onde devia. Conseguimos alcançá-lo a tempo, mas pensei que nunca mais recuperaria meu fôlego de volta.
Nós subimos para o primeiro andar do ônibus. Apenas nós dois e uma senhora quase adormecida em um dos bancos. Ele sentou na cadeira em frente a minha sem ofegar, aparentemente entretido com a minha situação. Eu exigi que ele parasse de se divertir ás minhas custas. Ele não parou. Me visualizei correndo desajeitada, com saltos altos, sem fôlego, quase tropeçando e não pude conter a risada.
Nós rimos. Não paramos. E ele riu da minha risada, acusando-a de ser esquisitamente engraçada. Joguei um papel amassado na cara dele. Ele abriu a boca fingindo indignação e jogou o papel de volta em minha direção. Ele errou feio. Eu ri da sua mira. Ele me atirou outro papel, acertando a nuca da senhora quase-adormecida. Ele se desculpou com a senhora que nos fuzilou fazendo a mais feia das caras. Eu tentei abafar o riso. Falhei. Minha risada ecoou no ônibus. Ele pôs a mão na boca, porém a inevitável risada escapou por entre os seus dedos e ele riu tão alto quanto eu.
Depois dessa noite, eu me senti como se nada de ruim se quer tivesse me atingido um dia. Ou melhor, me senti como se no mundo não existisse algo ruim o suficiente para me atingir.
Sei que voltaríamos a nos ver. Eu e o garoto que me fez esquecer.
Eu, ele e a senhora quase-adormecida.
Não sei se cavalheirismo existe, mas destino, esse sim eu sei que existe.
Luana Tenorio Pestana
Luana Tenorio Pestana